Artigo interessante!
As causas reais das políticas de
austeridade
As políticas de
austeridade levadas a cabo pelos Estados estimularam uma enorme concentração
dos
rendimentos. As elites econômicas aumentaram os seus lucros à custa do bem
estar da maioria das populações, exemplo claro no caso de Espanha. Essas
políticas têm como objetivo beneficiar os interesses do capital financeiro ao
privatizar as transferências públicas e os serviços públicos do Estado, a fim
de facilitar a intervenção de capital financeiro nestes setores e debilitar a
proteção social e com isso a classe trabalhadora e as classes médias. O artigo
é de Vincenç Navarro.
Vincenç Navarro (*)
Este artigo
identifica as causas que originaram a crise econômica e financeira atual nos
dois lados do Atlântico, causas enraizadas nas políticas levadas a cabo pelos
Estados que estimularam uma enorme concentração dos rendimentos, criando um
enorme problema de procura de bens e serviços, por um lado, e um capitalismo
baseado na especulação, por outro.
O artigo assinala
que, em consequência disso, as elites financeiras e econômicas aumentaram os
seus lucros à custa do bem estar da maioria das populações, exemplo claro no
caso de Espanha. As políticas de austeridade têm como objetivo beneficiar os
interesses do capital financeiro ao privatizar as transferências públicas e os
serviços públicos do Estado, a fim de facilitar a intervenção de capital
financeiro nestes setores e debilitar a proteção social e com isso a classe
trabalhadora e as classes médias.
Num artigo recente,
indiquei que as medidas que se estão a tomar para racionalizar o sistema
financeiro na União Europeia não estão a ter um impacto na resolução da Grande
Recessão que a União Europeia está a provar. Segundo o Fundo Monetário
Internacional (FMI), a economia espanhola descerá 1,5% do PIB, a italiana 2,3%,
a portuguesa 3%, a grega 5,2%, a britânica 0,6%, a alemã 0,9% e a francesa
0,1%. Para a média da União Europeia, as previsões de crescimento econômico são
nulas, como assinala a Comissão Europeia.
Na realidade,
calcula-se que a descida da economia europeia seja de 0,4% do seu PIB. Um mal
presente e um futuro pior. As reformas financeiras parecem não estar a melhorar
a situação. Antes pelo contrário, muitas das medidas que se estão a tomar para
melhorar o sistema financeiro, estão a piorar, em vez de melhorar, a situação
econômica. O ênfase do Banco Central Europeu (BCE) e da Comissão Europeia em
continuar as políticas de austeridade é um claro exemplo disso. Argumenta-se
que a disciplina fiscal (reduzir o déficit público dos Estados) é a chave para
recuperar a confiança dos mercados financeiros. Daí que, e como consequência,
se fazem mais e mais cortes nas transferências e nos serviços públicos do
Estado.
A maioria dos
trabalhos científicos credíveis mostram o profundo erro dessas políticas. Na
realidade, estas políticas de austeridade são responsáveis para que se vá
caindo mais e mais nesta Grande Recessão. E a causa de que isto seja assim não
é nada difícil de entender. A grande descida dos rendimentos do trabalho na
maioria dos países do mundo ocidental (e muito em especial na América do Norte
e na Europa ocidental) criou um enorme problema de escassez de procura, que
ainda quando foi paliada, em parte, devido ao enorme endividamento da população
(endividamento que beneficiou a banca), chegou a um limite que paralisou o
crescimento econômico. Mas a diminuição dos rendimentos do trabalho foi feita à
custa do enorme crescimento dos rendimentos do capital e da sua concentração em
sectores enormemente minoritários da população (o famoso 1% do movimento Occupy
Wall Street).
Encontramo-nos assim
com o aparente paradoxo que vemos: um enorme crescimento da quantidade de
dinheiro existente nas mãos de uns poucos, uma grande escassez de dinheiro para
que a maioria da população possa pagar os bens e serviços de que necessita para
manter o seu nível de vida. Na realidade, a pobreza está a alcançar dimensões
epidêmicas, atingindo grupos e classes sociais que se tinham sempre considerado
imunes à tal escassez de recursos.
O que deveria ser
feito e não se faz
Pareceria que o mais
lógico seria repartir a enorme concentração de dinheiro e se transferisse para
a população, em geral, permitindo-lhe comprar e atender às suas necessidades,
recuperando assim a economia.
A solução para esta
recessão é extraordinariamente fácil de desenhar, se o conhecimento científico
fosse o que motivara as decisões políticas. De novo, toda a evidência
científica credível existente assinala que a concentração dos rendimentos está
a dificultar a resolução da crise. E a forma de corrigir essa concentração é a
redistribuição desse dinheiro. Só nos EUA, o dinheiro acumulado (pela elite
econômica) durante estes anos de crise é de 2 trilhões de dólares. Não há, pois,
falta de dinheiro. A sua redistribuição para as classes populares resolveria
rapidamente o problema da falta de procura nos EUA.
Que isso não se faça,
deve-se ao enorme poder que tem 1% da população em cada país e das alianças que
se estabelecem entre eles em vários países. Os argumentos que constantemente se
dão, inclusivamente por autores de esquerda, para explicar porque não se faz
essa redistribuição e se estimule a procura, é que os economistas que dirigem
ou aconselham estas políticas de austeridade são incompetentes ou ignorantes,
argumentos que não são credíveis. Outro argumento que se utilizou é que esses
economistas estão imbuídos de uma ideologia, a ideologia neoliberal que
praticam e promovem com uma fé falhada de base empírica que a sustente. Mas
esse argumento ignora que a fé sempre se reproduz porque beneficia os que a
promovem e a sustentam. Há interesses muito poderosos – para os quais esses
economistas trabalham - que apoiam austeridade. Um deles é o capital
financeiro, pois a expansão econômica, que resultaria das políticas
redistributivas, afetaria a inflação.
O inimigo número um
da banca é sempre a inflação. Se o leitor tiver 100 euros e a inflação anual
for de 10%, no final do ano, a sua nota de 100 euros tem unicamente um valor de
90 euros em comparação com o valor inicial. E a banca tem trilhões de euros.
Isso significa que ligeiras variações da inflação podem ter impactos sumamente
negativos para o capital financeiro. Daí que as políticas de austeridade que
estão a ser impostas na Eurozona (e utilizo a expressão impostas, porque em
nenhum dos países onde essas políticas estão a ser levadas a cabo, constavam
dos programas eleitorais dos partidos governantes), e que estão a destruir o
bem-estar da maioria da população, tenham sido escolhidas pelo sistema de
governo do euro (o Banco Central Europeu e também a Comissão Europeia),
enormemente influenciado pelo capital financeiro europeu (e, muito em especial,
o alemão). Estas políticas tiveram muito êxito para esse capital financeiro. A
inflação média da Eurozona foi cerca de 2% por ano: o objetivo que se desenhou
quando se estabeleceu o euro (em novembro foi 2,2%).
Outras causas das
políticas de austeridade
Mas existe outra
razão pela qual continuam as políticas de austeridade. É que a enorme
quantidade de dinheiro que está a ser utilizada, por parte da banca, em
práticas especulativas, tem também os seus elevados riscos, como a banca bem o
sabe. Daí o seu desejo de procurar novas áreas de investimento, que não sejam
especulativas, tais como a Segurança Social e os serviços públicos do Estado.
São necessárias, pois, medidas de austeridade que empobreçam as transferências
públicas (como as pensões) e os serviços (como a saúde ou a educação), e que
estimulem a sua privatização. Isso oferece novas possibilidades para a banca e
para as companhias de seguro de modo a conseguir amplos lucros em atividades
menos arriscadas que as especulativas.
Esta é a explicação
das medidas de austeridade. E se não acreditar, veja quem está a beneficiar com
as privatizações da saúde na Catalunha, na Comunidade Autonômica de Madrid,
onde essas políticas de privatização foram mais acentuadas. Entre muitos
interesses financeiros, existem investimentos de alto risco, companhias de
seguro, consultorias para capital financeiro e um longo etcetera. É a
“americanização da saúde”.
Quer dizer, a
extensão do modelo de saúde norte-americano gerido pelas companhias financeiras
com o afã de lucro, que determinaram o sistema de saúde mais caro, mais
ineficiente e mais impopular dos sistemas de saúde existentes. Nos EUA o setor
da saúde é um campo de expansão do capital financeiro. E este é o objetivo das
políticas de austeridade na Europa (ver o meu livro “Medicine under Capitalism”
para analisar as consequências deste sistema de financiamento da saúde).
Outra causa da
persistência dessas políticas de austeridade é debilitar o mundo do trabalho e
os sindicatos. O caso espanhol é claro. Pela primeira vez numa época
democrática, os rendimentos do capital superam os rendimentos do trabalho. A
enorme influência do capital financeiro junto do patronato e do poder político
governante, faz e explica que, apesar da descida da procura e do escasso
crescimento económico, os rendimentos do capital continuem a crescer, ajudados
pelas políticas fiscais que garantem os seus amplos benefícios. A aliança do
capital com o Estado garante a prioridade de umas políticas que, enquanto
beneficiam uma minoria da população, destroem enormemente o bem-estar da
maioria.
Não é só 1%
Quando escrevo uma
minoria não me refiro só a 1%, tal como o movimento Occupy Wall Street faz
referência. Este 1% (proprietários e controladores do grande capital) tem um
poder decisivo e determinante. Na realidade, a sua percentagem sobre a
população, tanto nos EUA, como em Espanha, é muito menor que 1%. Mas este grupo
controla os meios que configuram o que um dos analistas mais agudos das
sociedades capitalistas, Gramsci definiu como hegemonia ideológica, que inclui
desde as escolas e academias até aos meios de informação e persuasão, e
determina a sabedoria convencional do país, que inclusivamente hoje, depois de
tanta dor e danos causados à população, continua a dominar: o neoliberalismo.
Toda uma bateria de
fundações, centros de estudos ou projetos de investigação são financiados pelo
capital e muito, em particular, pelo capital financeiro. Os maiores bancos do
país têm centros de estudos, organizam conferências, financiam jornais e
revistas chamadas científicas, onde o dogma se reproduz e se promove através de
amplas caixas de ressonância, meios radiofónicos e televisivos, ou imprensa
escrita, por sua vez endividada e dócil para com esses poderes. Este 1% para
poder mandar necessita do aparelho ideológico que o sustente. E daí que, apesar
dos danos que tais políticas estão a causar, elas continuam a ser promovidas.
(*) Vicenç Navarro –
Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona e Professor
de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA). Dirige o
Observatório Social de Espanha.
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